domingo, julho 30, 2006

O fim da história para Henry Miller

O ato de escrever é o mesmo que sonhar. A gente vai misturando o que é, com o que a gente quer que seja, com o que já foi...

Quando nós formos capazes de estar acordados e sonhar, então não será mais necessário escrever. E isso só ocorrerá quando o mundo for aquele com o qual se sonhou. Para esse poeta que disse isso, esse mundo é o da plena comunicação entre o querer e o fazer, a vontade e a realização.

“Derivamos todos da mesma fonte. Não há mistério sobre a origem das coisas. Somos todos parte da criação, todos reais, todos poetas, todos músicos; só nos falta desabrochar, apenas descobrir o que já existe em nós.” (Sexus)

No mínimo, pedagógico...

quarta-feira, julho 26, 2006

De rolê pelo centro

Depois de um almoço Ó-TE-MO na casa de uma grande amiga, desci o Largo da Santa Cecília tendo como destino a Sé. Fui até o ponto de ônibus com ela, que ia para Pinheiros e de lá segui a pé para o Largo do Arouche. Atravessei a faixa de gaza sem nenhum percalço e desemboquei do outro lado do elevado. Ali já podia avistar a alameda que vai até a Praça da República. Atrás de mim, um senhor, forrado de latinhas de metal que saracoteavam no seu franzino corpo enquanto ele andava, gritava pro gari que tinha visto o escritório deles lá na Lapa e “que puta chefe folgado, hein? Porque não vai dormir em casa...”, delirando na gargalhada que eu podia sentir pelo tirintintar das latas. Já do outro lado da praça, peguei a travessa que acaba em frente ao Teatro Municipal. A fachada maltratada pelo tempo era o que formava um oásis de sombra em meio aquele caos iluminado pelo sol que caia direto sobre nossas cabeças. Mesmo assim, de cima de um alto-falante o homem trajando roupas do exército gritava em frente a uma bandeira vermelha o quão corrupta a elite burguesa era só por ser elite, ou só por ser burguesa. E as pessoas que lá passavam olhavam pro homem constrangidas e davam aqueles risinhos sem-graça, desviando do nada só pra não passar muito perto. Afinal, deve ser contagioso, ou então ele deve comer criancinha.
No Viaduto do Chá, estranhei a ausência das ciganas que insistiam em ler a sua mão por um cigarro. Realmente fazia tempo que eu não passava por ali. Mais uma da coleção Moto-Serra.

Chegando na praça Patriarca, uma surpresa: lá tem uma Igreja!! E é do Santo Casamenteiro. Minúscula, incrustada em meio aqueles prédios antigos que hoje abrigam lanchonetes com churrasquinho grego e suco na faixa, a igrejinha recebia alguns fiéis que guiados por uma senhora loura, de quem só pude ver os longos cabelos, rezavam um terço todinho em voz alta. Fiz um pedido, não pra casar (obviamente!) e deixei a igreja em direção à catedral.

Ainda nas vielas que se cruzam até chegar no Largo da Sé, um homem que dormia na entrada de um café foi escorraçado pelo segurança que o chamou de vagabundo preguiçoso e o sujeito, ainda cambaleante de sono retrucou em alto e bom som: “eu gosto de dormir!!! E daí?!”. Ainda rindo desta resposta sincera, me deparei com uma roda de pessoas atentas a alguma daquelas apresentações de rua que pipocam no centro. Um cara ameaçando dar um mortal dentro de um espaço de vinte centímetros quadrados ficava provocando o público e em cinco minutos que estive por lá ele não deu nem uma cambalhota.

Dei umas voltas por alguns sebos que parecem um buraco no tempo. Num instantinho, já era tempo de encontrar aquela minha amiga novamente. Dessa vez, em frente à Catedral, onde ela já me esperava. Fomos andando até o começo da R. Augusta. Descendo da Praça Ramos para o Vale do Anhangabaú, um menino descalço, com o tênis de lado, molhava os dedos na fonte que exalava um forte cheiro de cloro e matutava, enquanto revolvia a superfície do espelho d’água, vendo seu reflexo se desfazer e refazer, no mesmo espaço onde provavelmente sua bisavó foi vendida. Ali é a Ladeira da Memória.

sábado, julho 15, 2006

Fui

Sentada à mesa do bar e olhando os transeundes, acabei de desistir do cara. Era essa a decisão que eu queria tomar. Quem sabe assim ele deixa de povoar a inquietude do meu pensamento.
O copo gelado de breja: uma desculpa.
O horário: uma justificativa.
E ele: a única possibilidade...
Podia estar pensando em como aquele cara grisalho se parece com meu professor ginasial. Ou em como a cerveja me anestesiará da dor quente da cera que me aguarda para às quatro. Ou em como tem engravatados no mundo. Ou na arte negra de Edgar Degas.
Mas estou aqui quase sem ao menos me importar com o homem-placa e sua inércia controlada por algum fiscal a espreita.
Há um evento sobre saúde na rua ao lado. Menininhas-loirinhas-vestidas-de-branco circulam pelas redondezas rindo sem graça e medindo a pressão arterial de quem, como eu, bebe uma breja gelada no bar numa quinta-feira a tarde.
Ao menos, o frio passou.
Os dois caras a minha frente sentam juntos mas não conversam. Quando um deles abre a boca, não compreendo, acho que fala em inglês e sua voz não é pário para o motor do busão.
Que não pára.
As pessoas não conversam aqui. Passam rápido como o ônibus, nem mesmo o garçom tem paciência de trocar umas poucas palavras comigo. Parece entediado. O som dos autos é o que impera.
Ainda são cinco pras três. Chegou um novo homem-placa. Ele veste calmamente o banner de plástico que anuncia um cyber-café (coisa que ele não sabe o que é, será uma nova marca do aromático pó marrom??). Ajeita o cabelo branco e puxa as calças. Aperta inutilmente a gravata que fica escondida sob o plástico. Mas agora ele já está pronto. Pronto para cumprir seu turno na humilhação do subemprego. Elegante, ajeita a placa para que fiquem simétricas a frente e as costas e, com cara de cansaço, põe as mãos nos bolsos e espera. Espera a hora passar.
Eu devo esperar até as três e meia: eu, meu caderno e meu copo de cerveja que com o reflexo do sol fica dourado e quente.
O segurança não pára de me olhar. Olhar desconfiado. Não sei se da cerveja ou do caderno. Talvez eu não pudesse fazer isso há 30 anos atrás: ficar de papo pro ar, bebericando e escrevendo...SOZINHA!! Ah, só pode ser subversiva!! Quer ir pra tranca??! Vacilona!



Olha só, até o vento me encontra fácil nesse meio de tarde. São três e vinte e sete. E a brisa traz consigo de novo o mesmo pensamento. É prazer. Gostaria de me lembrar da gente. Mas o farol logo se fecha e me alerta que o mundo está ali, no arrastão das pessoas que atravessam a larga avenida e o nós...ah, os nós estão na minha cabeça. Pago a conta, acendo um cigarro e vou-me embora, atrás da velhinha que tem plumas no lugar de cabelos.

segunda-feira, julho 10, 2006

arquelogia da vida

De fato, têm coisas que não parecem ser apreendidas, mas que a gente simplesmente já sabia. Coisas que de tanto ver e ouvir, viraram, osmoticamente uma conduta também nossa. Geralmente elas vêm dos nossos pais, avós e de todos aqueles que consideramos família, a ISR (Instituição Social Reguladora, que não vem com adjunto adnomial porque a pretensão é regular tudo mesmo).
Mas com isso sempre vêm coisas bacanas. Por exemplo, o Seu Barbosa. Ele é o borracheiro mais antigo do mundo. É aquele cara que eu já conheci velho e assim ele continua. Na época em que eu andava de carro com meu pai e ele soltava máximas do tipo: “atrás de uma bola sempre vem uma criança!”, fui aprendendo, sem perceber, algumas coisas sobre direção e carros. Quando o pneu esvaziou, nem pensei muito e já estava lá na frente da oficina do Seu Barbosa.
- Foi guia, né? Ligeiro, ele já começou a trocar o bico, com a calma que a agilidade não explica, 5 minutos e já estava pronto, contanto com a pausa pra levar café por cara da lotérica, vizinha da oficina.
– Pus dessa vez um bico menor!
E jogando o pneu dentro de uma bacia com água, ele conferiu se alguma bolha de ar escapava do líquido.
– Quer que eu troque? (foi aí que eu pasmei) e apontou exatamente pra posição do pneu que tinha murchado!! Eu, meio espantada, achei melhor não perguntar Como, seu Barbosa?? Como o senhor sabe que foi esse? e apenas balancei a cabeça afirmativamente.
Assobiando, enquanto manejava o macaco, Seu Barbosa descobria os segredos da minha vida....pelo pneu!!!
E a gente estuda por cinco anos e vira arqueólogo...

quinta-feira, julho 06, 2006

Fúria I - quando a gente volta pra casa e tá amanhecendo

Hoje
Hoje que eu pensei...
Esse é o primeiro dia do resto da minha vida
Hoje que eu pensei:
Tem tanta coisa pra pensar, mas tem tão mais pra sentir!

Hoje
Hoje que as coisas fizeram tanto sentido, elas próprias se desfizeram no ar
Hoje, no ar
Hoje noir

Hoje foi quando você se apaixonou...
Hoje eu queria um cigarro e não tinha
Hoje é um dia antes de visitar o Dr. Omar
Hoje eu tava tão bonita e você não percebeu
Hoje que o hoje passou e amanheceu
Hoje que eu queria ser, mas o céu é teu
Hoje que a luz bailarina de luar se verteu...
...na reta curvilínea desta silhueta de ferro que como a lua me adormeceu, espero despertar na linha que jamais padeceu, na condução mais estrita dessa história que sem a cadência tua, não conhecerás eu.
Na vontade louca que enquanto mais crua,
os teus lábios eram meus.

quarta-feira, julho 05, 2006

Bicho-preguiça

Outro dia assisti ao filme Depois da Vida, do Hirokazu Kore-eda. Numa espécie de repartição pública do além, cada um que morre deve escolher uma lembrança da sua própria vida com a qual deve partir para a eternidade. Hoje que meu pai faria 59 anos, escolho esta.

Ao final da tarde, quando o sol penetrava a terra, meu pai retornava da pescaria. Falando alto e pitando um cigarro no canto da boca que parecia não acabar nunca, ele chamava a atenção de todos na casa. Logo pegava sua xícara e enchia com o café novo que certamente sempre o aguardava. E, depois, ainda meio saltitante, começava a organizar e guardar sua tralha de pesca. Sempre auxiliado por alguma das mulheres apaixonadas pelo homem mais sedutor que eu já conheci, esse processo era rapidamente concluído e tão cedo estava ele na segunda xícara, agora acompanhada por um pão de onde escapava manteiga, com uma mordida menos cuidadosa.

Eu ficava esperando, ansiosa, o momento em que ele, ainda com aquele cheiro acre de protetor solar e suor, se deitava na rede e fechava os olhos. Eu chegava mansa e com um beijinho o despertava para que ele, mesmo sabendo das minhas intenções, me perguntasse: quer deitar aqui, gatinha?. Sem falar nada, só com um gesto afirmativo da cabeça, eu o fazia afastar-se um pouco e me envolver naqueles braços grandes e fortes que me sufocavam. Tentando compassar minha respiração com a dele, que era longa e lenta, eu adormecia nos seus braços, ao som do mar que era tanto dele.

lembranças da cidade da vovó

Faz duas semanas que tento terminar meu semestre na faculdade...
Num acontecimento daqueles que a gente torce pra rolar quando estamos no colegial, uma professora abortou o curso antes do último trabalho e resolveu dar cinco pra todos que fossem mal. Eu, apesar, de curtir muito literatura moçambicana, mantive a indiferença com que ela me recebeu e saí direto de sua sala para o bar. Direto é quase uma blasfêmia pra quem já andou no prédio da letras, se colocassem o David Bowie lá dentro, surgiriam monstrinhos, ou a Columbia Pictures rodaria um filme. Faz cinco anos que passo por lá e ainda não sei pra onde ir quando procuro uma nota!

Não fui pra qualquer bar, fui para o Cantinho da Amizade. O nome mais aconchegante para o lugar em que passamos quase dois terços da nossa semana e deixamos, pelo menos, um do nosso salário . No meio da cidade mais metropolitana que eu conheço, que dista pelo menos uma hora da praia, o que eu escuto na mesinha do lado: conversa de pescador!!

Três tiozinhos, com cara enrugada e dedo grosso, proseavam:

- sabe quanto tempo a gente demorô pra chegá na praia, no ventu?? 4 horas. Depois de gastá um litu de éter no motô e ainda assim ele num pegá, de jeito nium!!
- ó rapá, eu ando de barco mas tenho medo memo é de voá! Memo que no mar tenha esse negócio de salitú...e ó num tem porra nenhuma desse negócio de salvá a vida, não! É sem colete!
(...)
- a piaba é diferente do lambari!
-é nada! pra mim são tudo a mema coisa..
- a piaba ocê tem que enfiá pelo rabo e deixá ela nadano, porque pela frente, aí rapá, ela morre!

Fiquei vidrada nessa conversa até o moço do bar me chamar atenção de que minha cerveja tinha acabado...depois de três garrafas fui embora entendendo um pouquinho mais do nome do boteco e o porquê da galera que mora no Butantã não ligar nem um pouco pro centrão...