domingo, novembro 26, 2006

Memórias

Dançávamos tão apertados que sentia circular seu sangue pelas veias, e me sentia como adormecido de gosto com seu ofegar trabalhoso, quando me sacudiu pela primeira vez e quase me derrubou por terra o frêmito de morte.
(Gabriel Garcia Márquez)

sexta-feira, novembro 24, 2006

Cenário para uma morte

Fui procurar um pequeno armário nas lojas de móveis usados na Av. São João. Um mundo que esconde pessoas atrás das grandes cristaleiras, dos aparadores de mesa, baús e criados-mudos empilhados até uma altura que recuperá-los parece uma insensatez. Ninguém vai escolher a penteadeira que está em cima da cômoda que, por sua vez, é amparada pelo armário. Mas naquele grande labirinto de velhacarias, cada peça tão única me apresentava um universo próprio.

A maçaneta arrancada num único puxão tomado de ira nunca mais fora a mesma, cedendo ao toque delicado, depois de alguns meses, foi perdida numa segunda-feira às 5:50 da manhã, enquanto ainda estava escuro. O pé da estante arranhado pelos dentes afiados de um filhote safado que foi deixado por descuido na sala. “Marcela” quase sumindo depois de muita abrasão da lixa do marceneiro. A tinta que insiste em ficar sobre a madeira crua, ignorando as tentativas de retirá-la por alguém que ainda não cansou do móvel ocre e quer recuperá-lo, mas que na cozinha da D. Maria já não combinava com a geladeira verde que acabara de comprar em dezembro 1967. A rachadura no mármore que tampa a cômoda, resultado do acidente cometido por Agnaldo, que derrubou a luminária de ferro sobre ela quando corria para pegar a máquina fotográfica e registrar a melhor foto de sua vida: quando revelou o filme já não se lembrava mais e nem ficou tão boa assim...Todos estes vestígios foram tomando conta de mim naquele ambiente infinito. A cada curva que estreitamente se fazia, eu esbarrava com mais uma história.

Até que fui surpreendida por uma mesa diferente das outras, onde se encontravam papéis, cartões, um copo com clips, elásticos, borracha, um branquinho e uma caneta deitada sobre um papel semi-preenchido, uma espécie de recibo. Uma revista e uma calculadora.
-Vida, logo pensei.
Enquanto tentava imaginar se todas aquelas pessoas que deixaram um pouco da vida naqueles móveis a teriam perdido, esse vestígio de presença recente arrebatou meus pensamentos e, ainda distraidamente, me aproximei. Ninguém.
De repente, nas minhas costas:
–O que você procura?
Essa voz rouca e misteriosa ecoou e, num susto, me virei. Daquele corredor estreito por onde cheguei à mesa, surgiu uma senhora que poderia ter a idade de muitos daqueles móveis (ou mais). Olhei ao redor e percebi que ela só poderia ter feito o mesmo caminho que eu. Há quanto tempo esta mulher silenciosamente me seguia em meio ao mórbido labirinto? Fiquei alguns segundos ainda pensando na morte.
–Mocinha!!
–Oi...desculpe...ééé...
–Você procura algo de especial? Posso ajudar?
Ela era tão branca como se, como os móveis, nunca saísse de lá e tão curva, como se a penteadeira estivesse em cima dela e não da cômoda.
–Não....quer dizer, sim!
–É porque tem mais peças nos outros andares.
Eu não havia nem percebido que a loja tomava todo o prédio. Entramos em um elevador antigo que não se alinhava direito com o chão e subimos quatro andares. Enquanto subíamos, pude ver pelos espaços das grades os halls dos apartamentos, todos com grandes espelhos mofados que ficavam bem à frente da porta do elevador, cujo reflexo me assustava a cada andar.
Descemos no último.
Comecei a percorrer os salões daquele prédio carregado de passado e entulhado de vida. A velha, com seus passos calados, sumia cada vez que eu deixava de olhar pra ela. Essa angústia me fazia não querer tirar os olhos daquela criatura enrugada. As cadeiras estofadas de veludo vermelho carcomido tinham, de um lado, uma mesa estreita e alta, as pernas eram quase duas claves de sol e sobre ela uma vitrola de manivela; do outro, um objeto que me chamou atenção: um pesado mancebo. Ao tocá-lo, a velha logo me avisou:
-Este não está à venda!
O que faria aquela peça ali, então? Ambientação? Mas mancebo não fica em sala... Todavia, nada estava pendurado nele. Disfarcei meu estranhamento e continuei a observar. Dentro de uma grande estante de vidro havia um aviso com letras quase apagadas: “Este salão fica aberto para visitação apenas das 7:00 às 12:00”. Olhei no relógio e eram 13:45. Meio aturdida pela situação confusa, voltei-me para o hall e ameacei entrar novamente no elevador quando a velha me interceptou:
-Não, por aí não!
Eu lancei a ela um olhar assustado e ela me dirigiu às escadas, andando à minha frente. Com alguma hesitação, eu a segui até o andar de baixo, onde mais móveis se silenciavam naquela exposição a qual estavam fadados, sem esperança de reviverem na sala de alguém.

Agora não conseguia parar de pensar no que teriam testemunhado aquelas peças, enquanto participavam do cotidiano de pessoas que não sei quem são, onde estão e se estão:

Paixões, carinhos, brigas...

...assassinatos.

Saí do prédio pensando no Brian De Palma.

Acho que estou assistindo muito C.S.I....

domingo, novembro 19, 2006

Noite no sofá

Passei quase toda a madrugada pensando no meu pai. Se ele gostava ou não de quando ainda menina chupava aquela mamadeira agarrada nos cabelos dele. Sempre o acordava assim. As sete da manhã! Talvez tenha sonhado um pouco também. Mas não consigo mais fazer esta distinção. Entre a ilusão e o real, sei que ele me acompanhou a noite inteira.
Acho que adormeci um pouco no sofá de couro da sala. Onde passávamos bastante tempo juntos. Eu, no menorzinho e ele, no grandão, que já tinha um pouco a forma do seu corpo. Fechei os olhos e estiquei o braço, como costumava fazer. Lembrei-me da maneira com que ele tocava meu braço e tomava-me o pulso: sem medi-lo, sem enquadrá-lo no compasso clínico. Mas como quem sentia, enquanto conversávamos, o meu som orgânico...
...parece assim, ter a certeza de que vivo, de que sinto aquele momento também. É a sua medida das coisas, da minha vivacidade, da minha juventude, da minha tristeza. Escutamos um disco inteiro com ele assim: agarrado ao meu braço, os dedos indicador, médio e anelar pressionando levemente o encontro do braço com minha mão. E eu sentido minha artéria empurrando os grandes dedos do meu pai. De maneira absolutamente rítmica, apenas por vezes descompassada pelo contra-tempo de uma risada. Ele sente tudo isso com a sensível ponta dos seus grosseiros dedos. Força medida, controlada. Minha mão inteira fecha, única, somente seu polegar. Sinto-me pequena...
Abri os olhos,
ele não estava lá.
Saudade...

sexta-feira, novembro 17, 2006

Até que enfim um fim

Com eles sempre tinha acontecido assim, um acaso pensado. Ninguém sabia de onde vinha mas também ninguém perguntava como. Parecia que se encontravam sempre que queriam, por uma força do pensamento que acabava no susto de um ver o outro nos lugares mais quase-inesperados. E foi desse mesmo jeitinho que acabou.
Ela voltava do bar, onde fora comprar um maço de cigarros, coisa pouco usual, mas merecida naquele dia. Ainda subindo a rua de paralelepípedo, foi interrompida pelo carteiro que perguntava de uma tal de Violeta que ela nunca vira, a não ser na sua janela. Quando retomou o passo, avistou, ainda um pouco longe, ele. Andando faceiro com um sorriso nos lábios.
Tum-tum-tum.
Sentiu uma batida no peito que culminou num suspiro, não se sabe se de angústia, nervosismo ou ainda alguma felicidade.
Fazia um mês que não se viam. Ela, dúvida. Ele, silêncio.
Se aproximaram e se abraçaram daquele jeito que gostavam. Ela, na ponta dos pés, com os braços por cima dos dele.
Ele: Vamos conversar um pouquinho?
Ela: Você estava indo embora.
Ele: Não, estou indo comprar cigarros.
Ela mostrou-lhe o seu maço ainda fechado e ele, com um movimento de braço, a convidou para lhe acompanhar. Andaram ainda em silêncio até a esquina, quando ele lhe disse:
- Li seu e-mail.
Ela, ainda surpresa, não conseguiu abrir a boca, somente voltou sua cabeça a ele e mirou-lhe bem os olhos, esperando que ele continuasse.
Ele:
- Poesia...quando li, quis fazer uma imagem pra te dar. Mas resolvi te encontrar.
- Estranho...não esperava te encontrar tão cedo.
- É? Eu nunca evitei.
- É? Eu, sim. Você sumiu.
- Só consegui fazer assim. Eu sou assim.
- Sabe, a gente tem uma necessidade mesmo que ritual ou simbólica de finalizar as coisas, por isso as pessoas fazem velório, por isso que eu te escrevi.
- Essa necessidade vem mesmo da morte. Nossa coisa mais primitiva.
- Então, por quê o silêncio?
- Não sei...me apaixonei.
- Mas os apaixonados não fazem isso. Como você se apaixona, você escolhe?
- Não, por isso mesmo. Você é minha amiga.
- Você separa demais amiga de amante. Eu já te disse isso?
- Já. E, sim, eu separo. (silêncio) Vejo você falando e penso numa estrela cadente que vem incandescente e se apaga. As pessoas mudam.
- Quando a gente vive com os outros, eles criam expectativas sobre a gente. E precisamos cuidar deles. Mudar não significa ignorá-los.
- O silêncio não significa que estamos ignorando.
- Não? Quem pode dizer? Se não há palavras?
(silêncio)
- Gostava muito.
- Eu também... Mas fiquei puta. Puta por você não se importar com o que eu penso sobre você!
- Mas eu me importo! Achei o e-mail foda... Mas não tinha o que responder, você falou tchau!
- É, eu não esperava uma resposta mesmo...pelo menos não uma mensagem de volta.
- A gente ia se ver.
- É, mas enquanto isso....NADA!
- Eu tinha que finalizar outra coisa com outra pessoa.
- Mas isso não te dá o direito de não finalizar comigo!!!
Os dois se olharam.
Não iam brigar...
...então começaram a rir.
Ele:
- A gente devia ter feito isso tomando uma no bar.
Ela:
- Pelo menos...

Depois de contarem o que estavam fazendo com suas vidas e de fazerem promessas de amizade, devolveram um ao outro aquele abraço do começo. Um pouco menos trêmulo. Continuaram sem combinar nada. Mas acho que secretamente pensaram em não se ver.

Talvez...ano que vem.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Por não estarem distraídos



Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

(Clarice Lispector)