quarta-feira, julho 05, 2006

Bicho-preguiça

Outro dia assisti ao filme Depois da Vida, do Hirokazu Kore-eda. Numa espécie de repartição pública do além, cada um que morre deve escolher uma lembrança da sua própria vida com a qual deve partir para a eternidade. Hoje que meu pai faria 59 anos, escolho esta.

Ao final da tarde, quando o sol penetrava a terra, meu pai retornava da pescaria. Falando alto e pitando um cigarro no canto da boca que parecia não acabar nunca, ele chamava a atenção de todos na casa. Logo pegava sua xícara e enchia com o café novo que certamente sempre o aguardava. E, depois, ainda meio saltitante, começava a organizar e guardar sua tralha de pesca. Sempre auxiliado por alguma das mulheres apaixonadas pelo homem mais sedutor que eu já conheci, esse processo era rapidamente concluído e tão cedo estava ele na segunda xícara, agora acompanhada por um pão de onde escapava manteiga, com uma mordida menos cuidadosa.

Eu ficava esperando, ansiosa, o momento em que ele, ainda com aquele cheiro acre de protetor solar e suor, se deitava na rede e fechava os olhos. Eu chegava mansa e com um beijinho o despertava para que ele, mesmo sabendo das minhas intenções, me perguntasse: quer deitar aqui, gatinha?. Sem falar nada, só com um gesto afirmativo da cabeça, eu o fazia afastar-se um pouco e me envolver naqueles braços grandes e fortes que me sufocavam. Tentando compassar minha respiração com a dele, que era longa e lenta, eu adormecia nos seus braços, ao som do mar que era tanto dele.

4 Comments:

Blogger Angelamô said...

Ai!

5:16 PM  
Anonymous Anônimo said...

"Ex.: quem já vivenciou a perda de um parente conhece a dor que estou sentindo."

Esse exemplo, encontrei no Houaiss. Depois da definição da palavra "vivenciar", aparece como uso possível.

Sobre o texto, digo: é uma quintessência da vida em comum que vocês tiveram.

4:52 PM  
Blogger jubs said...

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

5:23 PM  
Anonymous Anônimo said...

ai, ai,... sua lembrança me trouxe lembranças também. Me lembro muito bem da sua relação com seu pai, o chamego(se é assim que se escreve) que exisria entre vocês lá no sofá da sua casa. Um amor único, que nunca havia visto nessa relação pai-filha, o que sempre me impressionou e me cativou... o amor que guardás contigo, juju!

12:55 AM  

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