sexta-feira, novembro 24, 2006

Cenário para uma morte

Fui procurar um pequeno armário nas lojas de móveis usados na Av. São João. Um mundo que esconde pessoas atrás das grandes cristaleiras, dos aparadores de mesa, baús e criados-mudos empilhados até uma altura que recuperá-los parece uma insensatez. Ninguém vai escolher a penteadeira que está em cima da cômoda que, por sua vez, é amparada pelo armário. Mas naquele grande labirinto de velhacarias, cada peça tão única me apresentava um universo próprio.

A maçaneta arrancada num único puxão tomado de ira nunca mais fora a mesma, cedendo ao toque delicado, depois de alguns meses, foi perdida numa segunda-feira às 5:50 da manhã, enquanto ainda estava escuro. O pé da estante arranhado pelos dentes afiados de um filhote safado que foi deixado por descuido na sala. “Marcela” quase sumindo depois de muita abrasão da lixa do marceneiro. A tinta que insiste em ficar sobre a madeira crua, ignorando as tentativas de retirá-la por alguém que ainda não cansou do móvel ocre e quer recuperá-lo, mas que na cozinha da D. Maria já não combinava com a geladeira verde que acabara de comprar em dezembro 1967. A rachadura no mármore que tampa a cômoda, resultado do acidente cometido por Agnaldo, que derrubou a luminária de ferro sobre ela quando corria para pegar a máquina fotográfica e registrar a melhor foto de sua vida: quando revelou o filme já não se lembrava mais e nem ficou tão boa assim...Todos estes vestígios foram tomando conta de mim naquele ambiente infinito. A cada curva que estreitamente se fazia, eu esbarrava com mais uma história.

Até que fui surpreendida por uma mesa diferente das outras, onde se encontravam papéis, cartões, um copo com clips, elásticos, borracha, um branquinho e uma caneta deitada sobre um papel semi-preenchido, uma espécie de recibo. Uma revista e uma calculadora.
-Vida, logo pensei.
Enquanto tentava imaginar se todas aquelas pessoas que deixaram um pouco da vida naqueles móveis a teriam perdido, esse vestígio de presença recente arrebatou meus pensamentos e, ainda distraidamente, me aproximei. Ninguém.
De repente, nas minhas costas:
–O que você procura?
Essa voz rouca e misteriosa ecoou e, num susto, me virei. Daquele corredor estreito por onde cheguei à mesa, surgiu uma senhora que poderia ter a idade de muitos daqueles móveis (ou mais). Olhei ao redor e percebi que ela só poderia ter feito o mesmo caminho que eu. Há quanto tempo esta mulher silenciosamente me seguia em meio ao mórbido labirinto? Fiquei alguns segundos ainda pensando na morte.
–Mocinha!!
–Oi...desculpe...ééé...
–Você procura algo de especial? Posso ajudar?
Ela era tão branca como se, como os móveis, nunca saísse de lá e tão curva, como se a penteadeira estivesse em cima dela e não da cômoda.
–Não....quer dizer, sim!
–É porque tem mais peças nos outros andares.
Eu não havia nem percebido que a loja tomava todo o prédio. Entramos em um elevador antigo que não se alinhava direito com o chão e subimos quatro andares. Enquanto subíamos, pude ver pelos espaços das grades os halls dos apartamentos, todos com grandes espelhos mofados que ficavam bem à frente da porta do elevador, cujo reflexo me assustava a cada andar.
Descemos no último.
Comecei a percorrer os salões daquele prédio carregado de passado e entulhado de vida. A velha, com seus passos calados, sumia cada vez que eu deixava de olhar pra ela. Essa angústia me fazia não querer tirar os olhos daquela criatura enrugada. As cadeiras estofadas de veludo vermelho carcomido tinham, de um lado, uma mesa estreita e alta, as pernas eram quase duas claves de sol e sobre ela uma vitrola de manivela; do outro, um objeto que me chamou atenção: um pesado mancebo. Ao tocá-lo, a velha logo me avisou:
-Este não está à venda!
O que faria aquela peça ali, então? Ambientação? Mas mancebo não fica em sala... Todavia, nada estava pendurado nele. Disfarcei meu estranhamento e continuei a observar. Dentro de uma grande estante de vidro havia um aviso com letras quase apagadas: “Este salão fica aberto para visitação apenas das 7:00 às 12:00”. Olhei no relógio e eram 13:45. Meio aturdida pela situação confusa, voltei-me para o hall e ameacei entrar novamente no elevador quando a velha me interceptou:
-Não, por aí não!
Eu lancei a ela um olhar assustado e ela me dirigiu às escadas, andando à minha frente. Com alguma hesitação, eu a segui até o andar de baixo, onde mais móveis se silenciavam naquela exposição a qual estavam fadados, sem esperança de reviverem na sala de alguém.

Agora não conseguia parar de pensar no que teriam testemunhado aquelas peças, enquanto participavam do cotidiano de pessoas que não sei quem são, onde estão e se estão:

Paixões, carinhos, brigas...

...assassinatos.

Saí do prédio pensando no Brian De Palma.

Acho que estou assistindo muito C.S.I....

3 Comments:

Blogger Angelamô said...

Nega, é sobrenatural sim!
Você viu um fantasma e duvido que qualquer peça estivesse à venda, ou mesmo que você consiga achar de novo esta loja...
Hahahaha

12:31 PM  
Blogger jubs said...

Não, cuquis, é policial. É sim! (senão eu não durmo...)

1:42 PM  
Anonymous Anônimo said...

Onde fica isso?! Quero ir. Fiquei toda arrepiada, ó!
Raquel

4:15 PM  

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