quinta-feira, junho 14, 2007

À moda antiga

A casa onde eu moro pertenceu a uma senhorinha, D. Maria, que morreu aos 98 anos, alguns meses depois do seu marido, o S. Armando. Eles eram muito amigos da minha família. O S. Armando carregava no peito um marca-passo implantado no hospital onde meu pai trabalhava, as custas de muita negociação. E eles foram eternamente gratos a isso. Em uma das últimas conversas que tive com D. Maria, ela me dizia com uma lucidez o que era envelhecer.

“É perder os sentidos”

É cada vez mais viver para si, para dentro. Os olhos não enxergam o mundo, que se torna uma imaginação, uma aposta; os ouvidos não captam a música, ouve-se somente o som de nossas próprias entranhas. É um isolamento.

Ela e S. Armando não conversavam há uns dez anos, quando ele passou a usar um aparelho auditivo. Mas que não funcionava com ela, só com a televisão. Sentados cada um em sua poltrona na sala escura, passavam horas no silêncio de nós dois.
Ela já não queria mais aquilo.
Ele já não se importava.

Enquanto ela me contava com algum esforço o que havia sido a vida de quem vivera noventa anos, me lembro de não tirar os olhos dos olhos inertes de S. Armando, cálidos, involuntários, ausentes. Ele não estava mais lá. Ele tinha desistido.

Ao contrário, D. Maria, com seu ímpeto de vida, incorporava nela cada ano de sua vida como se pudesse revivê-los naquele momento. Pois era isso que lhe restava. Lembrança. E com isso ela vivia acompanhadamente só. Ao lado de S. Armando.

Ontem conversava com uma amiga sobre a retidão dos homens. Sobre como são capazes de imergir numa decisão e ignorar o mundo que não faz parte dela. De viverem aquilo e nada mais. E de como nós, mulheres, incorporamos nas nossas decisões milhares de sentidos simultaneamente, o vivido e o imaginado, o real e a vontade, o agora e o depois.

O S. Armando decidiu morrer. E era isso que ele estava fazendo. A D. Maria decidiu por ela e o S. Armando. E era isso que ela estava fazendo.

No final da conversa, ela me contou que aos sessenta anos, há trinta anos atrás...ela resolveu tirar carteira de motorista, comprou um fusca azul 1971 e levou o s. Armando pra conhecer a praia, em Santos.

Sem a D. Maria, e sua loucura feminina, talvez S. Armando, com sua dura retidão, nunca teria visto a linda imensidão verde que é o mar.

Algum tempo depois ele morreu e ela o seguiu...

2 Comments:

Blogger Angelamô said...

Munito
Saudades da xuxu!
Te liguei pra bebermops na véspera do feriado, vc já tinha saído
Bj

2:35 PM  
Anonymous Anônimo said...

Como diz o cara do boleros: "Puta história triste!". No entanto, lindamente contada.

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11:03 AM  

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