terça-feira, junho 19, 2007

Estou lendo um livro escrito pelo Nei Lopes. Grande historiador! Que vai buscar no Segundo Reinado e no início da República a gênese do partido-alto no samba carioca. Vem da Bahia, vem de Minas Gerais, vem do terreiro. Jongo, lundu, chula, samba-de-roda, partidero.
Mas aí ele vai contando também como foram surgindo as ocupações dos morros ao redor da zona portuária do Rio e depois, com as ferrovias, a ocupação da grande faixa suburbana que ia do que hoje é Queimados (bairro da cidade de Campos Goytacazes) até Japeri (município metropolitano do RJ).
Em 1886, a criação da Estrada de Ferro Leopoldina atraiu para a zona norte as pessoas que já estavam sendo expulsas do centro pelo alto crescimento demográfio da região. Mineiros, soldados, ex-escravos. Todos que chegavam à capital do Império em busca de uma vidinha melhor e tinham que ir se alojar em lugares bem mais distantes que o Catete.
Assim foram surgindo os bairros de Bonsussesso, Ramos, o antigo Pedro Ernesto, hoje a Olaria, e o bairro Amorin, depois Carlos Chagas que hoje conhecemos como Manguinhos. Atualmente, todos fazem parte da mesma Administração Regional, a AR X. (Não, não é nome de fuzil!).
Há dois anos, se não me engano, fui ao Rio de Janeiro passar o feriado com uns amigos de lá. Um deles trabalhava de porteiro no hospital psiquiátrico de Manguinhos, então, numa noite, resolvemos ir curtir no baile funk desse morro que ele conhecia, onde ele pegava o beckinho dele de vez em quando. O problema é que o baile era mesmo no asfalto...


Manguinhos

Dedicado à
Nossa Senhora das Fita Errada

As pessoas corriam como uma manada que foge de seu caçador. É o estouro da boiada. Até afunilarem-se no portão de fuga que ficava ao fundo da quadra, do lado oposto à sua entrada. Ao som das rajadas da metranca, das bombas de gás e do estouro do fuzil, agarrávamos em nossos conhecidos para não nos perdermos naquele caos sonoro.
Os que sofrem esta ameaça em qualquer atividade cotidiana, sabiam mais ou menos a gravidade da situação, contudo não titubearam em correr....em silêncio. Um silêncio que só denunciava o medo pelos olhos apavorados ou pela risada forjada pela malandragem vascilante. Mesmo aqueles, que bolavam um baseado sentados ao banco do bar mais próximo à quadra, estavam em alerta. Sabiam o que estava acontecendo e eu.....eu naquele lugar era uma estrangeira. Vulnerável.

***

Quando estava a caminho da quadra do morro Manguinhos, fui informada sobre a total imprevisibilidade que envolve o baile funk, principalmente este que acontecia na beira do asfalto, ao lado da linha de contenção, no pé do morro. O baile é a festa proibida. É a lei do comando, no caso, do Vermelho, que disputa poder com a polícia. O baile é uma afronta.
Passávamos pelo túnel Noel Rosa, o único que não leva a zona sul a lugar algum e por isso é escuro e manchado, enquanto escutávamos as histórias sobre as bombas nos bailes ao som dos Proibidões. Chegamos na blitz policial prevista, quase já ao pé do morro.
Nosso carro foi parado por um sujeito do exército que carregava uma AK-47 à tira colo. Estávamos na Faixa de Gaza Carioca. Pediu os documentos e o cafezinho que, no fim, esqueceu de cobrar. Passamos pelo pente fino sem maiores danos, além da garganta seca, coração palpitante e mãos suadas. Menos de dez minutos depois e chegávamos na entrada da favela.
A rua estava toda enfeitada. Luzes penduradas nos postes traziam para aquele ambiente desconhecido um certo ar de familiaridade. Confesso que minha tensão se escondeu no deslumbramento. Até dar de cara com mais fuzis e metralhadoras que guardavam a boca bem na entrada da quadra.
Entramos no baile. Respirei fundo e pensei: sair daqui é questão de sorte... Não é possível confiar no dia, na cara, no carioca que nos levara até lá, nos caras com suas metrancas, nada disso dizia se aquele era um dia tranqüilo ou se ia acabar em bosta. Era o imprevisível. E o mais desesperador eram as pessoas que ainda conseguiam de divertir diante disto, conseguiam ficar de boa. Claro...é este alerta que sustenta todos os momentos de todos que ali estavam. Não se via ninguém bêbado, caindo ou caído. O pega é outro.

***

Pegamos uma breja de 2, um beck de 5 e um papel de 10. Entornei meu copo muito rapidamente, pois era o que me restava. Não tive vontade de fazer mais nada. Pensei que o melhor era me manter meio sóbria.
Observava tudo como quem vem de fora. As meninas dançavam todas de maneira muito semelhante, as pernas separadas e os joelhos dobrados sustentavam suas bundas que mexiam no ritmo de uma trepada. Era a simulação do sexo. Os meninos assediavam apenas com os olhos. Não compreendi qual o código para o flerte. Para nós ninguém olhava. As crianças, por sua vez, imitavam os mais velhos ou corriam por entre as pessoas apenas brincando.
No meu terceiro copo, já me sentia ludibriada pelo álcool e até ensaiei um sorriso, quem sabe algum remelexo do corpo. Alguém sugeriu que fossemos mais para o fundo ver o que estava rolando lá. Fui eu a encarregada pela garrafa. Peguei-a e segui-os. Antes que eu pudesse recolocá-la ao chão, aquela massa de gente que nos precedia se pôs a correr e o ensurdecedor barulho de tiros e bombas começou.
Não corri em direção a algum lugar mas em oposição a outro. Perdi-me de quem estava ao meu lado, mas avistei umas costas conhecidas. Agarrei-me nelas e me pus a perguntar: cadê as meninas? Cadê as meninas? O som da minha voz não conseguia sobrepor aquela sinfonia bélica e continuamos a correr.

O portão se abriu!

Ouvi esta frase de uma outra voz que eu sabia conhecer e fui arrastada pela multidão. Ao passo que um sujeito ao meu lado dizia para todos manterem a calma, ele mesmo empurrava-me e ao da frente como se assim fôssemos todos passar pelo minúsculo buraco que se tornou aquele grande portão dos fundos da quadra.
Saímos. Eu queria correr para o mais longe possível daquele lugar, mas isto não era o mais seguro. Não sabíamos o que estava acontecendo: era o Alemão? Era a polícia? Entraram por quais lados? Onde era o asfalto? Mais correria. Desta vez fomos obrigados a entrar nas estreitas vielas dos barracos. Desembocamos, quase misteriosamente, num grande campo de futebol...aberto...onde nos tornamos, facilmente, alvos. Recuamos um pouco e avistamos um bar. Pessoas tomavam suas cervejas e falavam sobre o que acontecia. Eu não conseguia soltar a mão do meu amigo e a apertava forte como se isto fosse impedir alguma coisa. Tremia. Tínhamos que voltar. Havíamos deixado os nossos lá. Fiquei em uma esquina sozinha, para não voltarmos os dois, e ao meu lado parou um sujeito da Contenção. Portando uma UZI. Eu tinha visto no máximo uma automática até a blitz onde paramos. E ali estava....a um passo de mim, aquele cara sem camisa, de bermuda e chinelos, pronto para arregaçar o invasor. Descobri que quem tinha passado na frente do baile era a polícia mesmo, no Caverão. O blindado que sobe o morro atirando em qualquer um. O cara da Contenção tinha trocado tiros com ele. Não troquei uma palavra com o sujeito e não parei de pensar em um jeito de me afastar dele, mas não podia, tinha que esperar. Ali somos todos alvos, porém existem situações em que nos tornamos alvos fáceis e são estas que devemos evitar.
Rolou mais uma correria e com ela veio meu amigo. Não, não encontrei... Voltamos ao bar. Lembramos do telefone celular e tentamos ligar. Encontramos um. Agora, éramos três. Faltavam as duas, aquelas das quais eu havia me perdido ainda na quadra.
As pessoas nos olhavam desconfiadas. Vieram perguntar de onde éramos e o carioquês passou um pano. Nóissss viémusss do Boriéeeu. As crianças, geralmente mais espertas, apenas riam das nossas caras de pavor. Até tentaram nos ajudar nos indicando as saídas para o asfalto, mas disto nós já sabíamos....o problema era outro.
Fomos e voltamos de um lado para o outro com o medo que nos afastava mais de achar as pessoas que havíamos perdido. Elas devem ter tentado ir para o carro! – Mas lá é onde os home entraram! – Então saíram pela esquerda... – Não! A esquerda também dá no campinho! – Será que saíram? – Claro.. – Será que estão na quadra? – Mas é impossível! Brigamos, discutimos, andamos, nos expusemos.
Lembrei o número de telefone de um dos nossos que ficou em casa e que quando saímos pedimos a ele que deixasse o celular ligado. Oi...as meninas ligaram? – aquele um segundo de espera pela reposta transformou-se num calafrio que subiu minha espinha – Ligaram. Estão tentando ligar para vocês – Alívio... – Nos perdemos. Se ligarem, peça para irem até o campinho!Beleza! Desliguei e o telefone tocou – Estamos num táxi, voltando para casa.

***

Fomos embora pelo esgoto para não atravessarmos o campo aberto e chegamos no asfalto. Deixamos todas aquelas pessoas lá. Elas não podem pegar um táxi e sumir da guerra. Enquanto voltava, lembrei-me de uma cena que vi ao lado do cara da Contenção. Um morador penteava o cabelo na janela de sua casa e pendurava a toalha molhada para fora em meio aquele caos e ao desespero que me fazia pingar de suor.
Naquele mesmo dia, tínhamos ido ao Cristo Redentor à tarde, a um show na praia e ao baile à noite. O que para nós era turismo, para as pessoas do morro era a única balada, na qual não existe sossego e o medo é sossegado.

Se no século passado, o partideiro era perseguido e preso com seu pandeiro na mão. Hoje não é tão diferente, o que rola a mais é energia elétrica e dez caixas de som enormes que competem com o fuzíl. Mas ele sempre ganha...

4 Comments:

Blogger Cathola said...

Ai que delicia reler esse texto Juju...viva a nossa senhora dax fita errada....ela é a nossa padroeira...
beijocas....
Cássia

2:34 PM  
Blogger Cathola said...

Ai que delicia reler esse texto Juju...viva a nossa senhora dax fita errada....ela é a nossa padroeira...
beijocas....
Cássia

2:34 PM  
Blogger Unknown said...

ai ju, essa hhistória é ótima quando narrada, mas eu nunca gostaria de estar na sua pele.
bjs
Tati

7:31 AM  
Anonymous Anônimo said...

É, Xu, a gente tenta mas nem todo mundo pode pegar um táxi e fugir da guerra...
Um beijo e muita saudade,
Shis

5:39 PM  

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